Moqueca à Crivella
Alberto Dines
Histórias de pescador são geralmente fantasiosas mas, ao afirmar que sequer sabe enganchar a minhoca no anzol, o novo ministro da Pesca, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), não apenas fez uma rara opção pela verdade, como escancarou a enganação embutida na criação e manutenção deste Monumento ao Desperdício chamado Secretaria Especial da Pesca.
O herdeiro da Igreja Universal do Reino de Deus, líder da bancada evangélica do Legislativo, completou seu breve convívio com a transparência ao negar que a nova carreira piscatória tenha algo a ver com o esforço do governo federal em reforçar a candidatura de Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo. Com isso, só confirmou o real objetivo da manobra. No que foi ajudado pelo devoto ministro Gilberto de Carvalho ao declarar que a nomeação do Pescador-Mor “vai facilitar a relação com as igrejas.”
Esta indigesta moqueca à Crivella tem o mérito de trazer, para a agenda nacional, a escamoteada questão do secularismo. O Brasil está retornando, rapidamente, ao estágio teocrático que vigeu, sem interrupções, do descobrimento até a votação da primeira Carta Magna republicana em 1891.
Embora seja pacífico que o nosso atraso em matéria de educação, ciência, cultura e imprensa decorra da prolongada sujeição do Estado à Igreja, nada se fez para reverter tão grave deficiência institucional. O Estado de Direito, no Brasil, é capenga, todos sabem disso. Ninguém tenta reabilitá-lo, tanto na esfera simbólica como na administrativa.
Antes do velocíssimo crescimento das seitas evangélicas no Brasil, quem ousava contrapor-se à hegemonia da Igreja eram as diferentes confissões luteranas. O general-ditador Ernesto Geisel, único Chefe de Estado ostensivamente anticatólico, em 1976, numa das freadas da sua Distensão, aproveitou-se do arsenal autoritário para emplacar, de forma solerte, a dissolução do casamento e a legitimação do divórcio, o que abalou a Igreja, enfraqueceu sua formidável cruzada em defesa dos direitos humanos, e deu à ditadura um amplo apoio popular.
De lá para cá, ditadores e presidentes enfrentaram o poderoso vetor teocrático com a mesma esperteza: contentando de forma equitativa a católicos e protestantes, facilitando seus imensos privilégios, concedendo-lhes o ilegítimo acesso aos meios de comunicação eletrônicos e sepultando nas gavetas qualquer debate que possa nos aproximar do Estado de Direito democrático, secular e isonômico.
Mesmo o Poder Judiciário – teoricamente comprometido com suas prerrogativas e independência — convive no plenário da suprema corte com a discrepante exibição da cruz acima das armas da República. Na Espanha, muito mais católica, isto seria um acinte, aqui não chama a atenção dos eleitores, políticos, nem confronta os meritíssimos.
Esta incapacidade de defender o secularismo e a idéia do estado laico manifesta-se com igual intensidade nas hostes do governo e da oposição. PT e PSDB, geneticamente de esquerda, deram um jeito de driblar os respectivos DNAs e não resistem à tentação de comungar e persignar-se em atos oficiais mesmo sabidamente ateus, agnósticos ou céticos. Os confessores de hoje não se importam com ave-marias erradas e padre-nossos incompletos, diferentemente do que acontecia nos tempos da Inquisição.
O vale-tudo infiltrou-se no terreno da fé. Crivella, suas minhocas e peixes, é o símbolo de um sincretismo que parece coisa do Diabo.