Tudo bem?
Alberto Dines
Brasileiros não suportam tensões. Mesmo quando as incertezas dominam o horizonte, preferimos acreditar que vivemos no melhor dos mundos. Ao saudar alguém, não lhe oferecemos outra alternativa senão o compulsório “Tudo bem?”. Ou ele desfia seu rol de aflições — e isso exige tempo e esforço — ou resigna-se com um lacônico “Tudo”.
Bordão, divisa nacional, manual de drible, proposta de vida: “tudo bem?” é a solução mágica para disfarçar crises enrustidas, contornar premências e enfiar a sujeira debaixo do tapete. O mais recente autoengano foi produzido pela greve dos caminhoneiros autônomos que, de surpresa, conseguiu a façanha de parar S. Paulo. Literalmente.
O protesto contra as restrições impostas pela prefeitura ao tráfego dos grandes caminhões nas vias estratégicas, em horários de pico, converteu-se numa das paralisações mais engenhosas e mais bem sucedidas dos últimos tempos. A locomotiva do país foi obrigada a capitular diante da organização dos trabalhadores-empresários, responsáveis pela distribuição total de combustíveis. A megalópole empacou, primeiro por um engarrafamento colossal, em seguida pelo desabastecimento de combustíveis nos postos de venda.
Greve ou lock-out — a designação é irrelevante — o que restou do bloqueio quatro dias depois foi a constatação da total vulnerabilidade do sistema venoso no coração da sexta maior economia mundial. O colapso não foi apenas logístico, foi institucional e político. Escancarou a precariedade dos sistemas de segurança e defesa civil da maior cidade do país.
Uma prefeitura acéfala desde quando seu burgomestre, Gilberto Kassab, lançou-se espetacularmente no cenário político nacional, mostrou-se totalmente despreparada para enfrentar os efeitos perversos de um plano destinado prioritariamente à melhora da circulação de automóveis. Para conquistar votos na classe média motorizada tenta-se esvaziar as ruas e ninguém percebe que está enxugando gelo – dentro de alguns meses as vias desobstruídas estarão novamente obstruídas pelos carros novos que saem das linhas de montagem.
Tudo bem: o transporte público é problema em todos os grandes centros urbanos do mundo e não seremos os primeiros a resolvê-lo. Tudo mal: o problema do transporte público pode ser resolvido quando se tem um máster-plan, um plano diretor a ser implementado progressivamente. Com improvisações em vésperas de eleições não se chega a lugar algum. A não ser o caos. Absorvidas pelas miragens do pré-sal, tanto a Petrobrás como a Agência Nacional de Petróleo (que também cuida dos biocombustíveis), não se preocuparam em montar um sistema permanente de distribuição apto a enfrentar emergências, convulsões e catástrofes.
Os caminhoneiros autônomos não são os vilões, o sistema ao qual servem é arcaico, não muito diferente das guildas medievais. A gigantesca operação de abastecer de combustível uma das maiores cidades do mundo não pode ser entregue a autônomos; cooperativas seriam operacionalmente mais produtivas e socialmente mais avançadas. Autônomos não têm condições de resistir às pressões de interesses escusos. Basta lembrar as máfias que tomaram conta dos “sindicatos” de caminhoneiros autônomos nos EUA (os famosos “teamsters”).
Todos estão super-felizes com as notícias de que o abastecimento deve regularizar-se até a próxima segunda-feira. Ninguém tem coragem de pensar no tal “Day After”. Porque onde impera o “tudo bem” o ceticismo é impatriótico e o heróico desmancha-prazeres corre o risco de ser linchado.