Impossível minimizar ou disfarçar a importância da decisão do Supremo Tribunal desta quinta-feira dando à gestante o direito de solicitar a interrupção da gravidez quando o feto é anencéfalo. A corte admitiu mais uma circunstância em que o aborto é permitido. Movimento histórico, insofismável.
As alegações dos oito ministros que votaram a favor deste direito concedido à mulher desenvolveram-se em diferentes esferas — jurídica, médica, moral, espiritual e, inclusive, retórica. Ficou visível o empenho em evitar especulações sobre as implicações ideológicas, teológicas e institucionais da decisão. Mesmo os dois magistrados que votaram contra o direito, esquivaram-se da questão fulcral: pela primeira vez na história do Brasil foram contestadas em tribunal as imposições da Igreja Católica (agora associada às outras confissões cristãs).
As exceções ficaram por conta do debochador-mor, o ministro Gilmar Mendes, referindo-se aos “faniquitos dos anticlericais” quando protestou contra a proibição imposta aos advogados da CNBB de se manifestar na tribuna. Secundado pelo conservador Celso de Melo que advertiu ingenuamente para não se converter aquela controvérsia jurídica numa disputa Igreja-Estado.
A CNBB tirou da clandestinidade a questão chave, a “ingerência da religião no estado laico” justamente ao tentar desmenti-la. O laicismo da República Federativa do Brasil é fingido, cosmético. A concordata entre o Estado brasileiro e o Vaticano, orquestrada pelo presidente Lula à revelia do conhecimento público, é prova disso. A concessão de dezenas de emissoras de rádio e TV a entidades assumidamente religiosas é outra demonstração do nosso secularismo enganoso.
O laicismo francês é orgânico, inseparável da fé republicana. Na simbologia institucional americana abundam referências religiosas: o papel moeda ostenta o moto “In God We Trust”, Confiamos em Deus, na solenidade de posse, os presidentes fazem o juramento com a mão na Bíblia e, no entanto, anexado à constituição dos EUA está um conjunto de dez emendas pétreas, simples e contundentes, nas quais se garantem os direitos fundamentais do cidadão. A primeira e mais famosa proíbe taxativamente o Congresso de criar uma religião oficial, impedir a liberdade de culto, ameaçar a liberdade de expressão, da imprensa e de reunião.
São laicismos diferenciados, mas efetivos, inquestionáveis. O nosso começou a ser implementado agora, 512 anos depois do Descobrimento e, mesmo assim, precisará da máxima discrição para não gerar retaliações ou compensações deformadoras. A histórica decisão desta semana precisará ser camuflada ainda que o laicismo seja símbolo da tolerância, do humanismo, da modernidade. E da paz.
As principais zonas de guerra e conflito hoje se situam precisamente em regiões onde não existe a noção de secularismo e estado de direito, a primavera árabe está resultando em novo surto de fundamentalismo político-religioso. Israel, criado a despeito do messianismo dos ortodoxos, caminha rapidamente para tornar-se um estado teocrático.
O Brasil avançou e não deve envergonhar-se do avanço. O laicismo não é anti-religioso, ao contrário, devolve a religião ao plano espiritual. De onde jamais deveria ter saído.
por Alberto Dines