As chacinas praticadas pelo terrorista Mohammed Merah, em Toulouse, e a sua morte, nesta quinta-feira, estão fortemente impregnadas pelo radicalismo religioso, não obstante o rigoroso laicismo da República Francesa.
Para justificar o seu ódio, nos breves contactos que manteve com as autoridades antes de ser executado, Merah mencionou que os três atentados foram uma represália contra as medidas impostas pelo governo francês contra o uso de símbolos religiosos no vestuário feminino e contra o assassinato de crianças palestinas em Gaza.
A delirante lógica do sociopata treinado pela Al-Qaida poderia servir à alegação dos fundamentalistas, clericais e antisecularistas de que o arraigado laicismo francês não conseguiu impedir a compulsão sanguinária, portanto seria inútil.
Ao contrário, Toulouse inscreveu-se indelevelmente como reforço da argumentação em favor da total separação entre Religião e Estado. Inclusive na esfera simbólica. Quando a fé se transfere do plano íntimo e espiritual, e incorpora-se de alguma forma à estrutura do Estado, assume-se automaticamente como instrumento de poder. Contaminada pela religião – mesmo levemente — a política deságua fatalmente no estuário da exclusão, do fanatismo e do terror.
A França é um dos países mais ostensivamente laicos do Ocidente, mais ainda do que os EUA. A separação entre Igreja e Estado, preciosa herança do Iluminismo europeu, foi um dos avanços mais notáveis da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1791), produzida pela Revolução Francesa.
Este passado republicano não impede que a França seja um dos baluartes do catolicismo e, ao mesmo tempo abrigue grandes contingentes de outras religiões praticadas livremente.
A ideia de tolerância e as normas para viabilizá-la estão inscritas no Estado Democrático de Direito e não podem ser surrupiadas, adulteradas ou descaracterizadas por macetes do senso comum ou truques cartoriais.
As chacinas fundamentalistas de Toulouse associam-se de forma inevitável, direta e indiretamente a um debate que já não pode ser minimizado nem arquivado: a utilização de símbolos religiosos em locais que representam o Estado brasileiro.
Luis Fernando Veríssimo resumiu a questão com uma formulação simples, inspirada e definitiva no artigo publicado nesta mesma quinta (“Estado de S. Paulo” e “O Globo”):
“Um crucifixo na parede não é um objeto de decoração, é uma declaração. Na parede de espaços públicos de um país em que a separação entre Igreja e Estado está explícita na Constituição, é uma desobediência, mitigada pelo hábito.”
Este é o ponto: as pequenas mitigações e complacências que se acumulam debaixo dos tapetes, nos cantos e desvãos de nossas instituições acabam por produzir as enormes distorções e contradições que emperram nossos avanços psicológicos, morais, culturais e políticos.
A prisão em Curitiba, pela Polícia Federal, de blogueiros que faziam apologia da violência e do racismo, evidencia a capacidade de propagação da intolerância. Toulouse pode estar aqui.
por Alberto Dines