O filme integral ainda não apareceu, deveria chamar-se “Inocência dos muçulmanos”, mas foi postado no You Tube com o título de “Trailer do filme de Maomé”. Com 14 minutos, rodado precariamente num fundo de quintal perto de Hollywood, sem cenários, atores com barbas postiças e atrizes enroladas em lençóis e mal dublado, teria custado cem mil dólares. O responsável seria um notório charlatão egípcio-americano de origem copta.

Resposta discreta — um milhão e meio de visitas — se comparada com vídeos reproduzidos 700 milhões de vezes. E, no entanto, este trambique videográfico está provocando um novo incêndio no mundo islâmico, do Magreb ao Paquistão, com a morte de quatro diplomatas americanos na Líbia recém democratizada. A bola de neve poderá até influir nas próximas eleições presidenciais, caso o simplismo do republicano Mitt Romney o leve a explorar o episódio provocado por um agente provocador de direita, como “erro da política externa de Barack Obama”.

Hillary Clinton considerou o vídeo repulsivo, mas explicou ao mundo islâmico que a constituição americana, consagrada em 1788, garante a liberdade de expressão. O recém-empossado presidente egípcio Mohamed Morsi, em sua estréia no cenário internacional (Bruxelas), clamava aos EUA a acabar com “um crime contra a humanidade”.

O grupo Google, proprietário do You Tube, rapidamente retirou o infame trailer da rede em diversos países islâmicos. No Google de países ocidentais, um embargo deste tipo seria impensável. Mesmo mascarado como “regulação”.

O impasse tem cores trágicas: o longo convívio com a democracia não ajudou a sociedade americana a tolerar diferenças. O rancor contra o islamismo e contra os vizinhos latinos são dois exemplos recentes de uma nação ainda enfezada, ressentida, mesquinha, apesar dos 224 anos de vigência de uma constituição considerada exemplar. Um negro na Casa Branca não conseguiu eliminar velhos preconceitos. Talvez os tenha agravado.

As primeiras doses de democracia também não ajudaram a Líbia nem o Egito a libertarem-se da violência e do autoritarismo. A tão decantada  “primavera árabe” acabou com ditaduras, mas não soube preservar o núcleo laico nelas embutido desde os anos vinte do século passado quando Mustafá Kemal tentou modernizar os escombros do Império Otomano.

A tecnologia é universalista, tende inevitavelmente para aberturas, impossível limitar os avanços, sobretudo quando se desenvolve em estados livres. O fanatismo religioso é inexoravelmente fechado, discricionário, despótico. Só uma democracia capaz de respeitar a dignidade de todos os crentes — e descrentes — será capaz de evitar a escalada de nova e catastrófica guerra santa.